Experiência XII
- Onde é que eu estive este tempo todo?
À sua volta, as pessoas correm na sua direcção. Está deitado no chão, mal consegue abrir os olhos, fixando-se no céu azul. As pessoas parecem estar a gritar, mas todos os sons estão abafados.
- Parece que foi há pouco tempo que tive naquela praia com ela, até ao anoitecer, só os dois, num pequeno piquenique.
As pessoas aproximam-se. Lentamente, mais pessoas saem dos sítios onde estavam escondidas. Do outro lado da rua, um homem é encostado ao chão por outro homem.
- Ainda a estou a ver caminhar calmamente pela praia vazia, ao som das ondas, do mar calmo. Virando-se para mim, sorrindo e pedindo que a acompanhasse.
As pessoas fazem um círculo à volta dele, tentam-lhe dizer qualquer coisa, mas ele não quer saber. O seu olhar está vidrado no céu azul, no final de tarde que se aproxima.
- Dar-lhe a mão, vê-la envergonhada, mas feliz. Dizer-lhe coisas parvas, fruto do nervosismo, com medo de a chatear. A brisa que passa por nós e lhe leva o chapéu, fazendo-o cambalear na areia.
As pessoas estão visivelmente transtornadas. Um dos homens chama alguém que está longe, grita, mexe os braços. O outro homem estendido no chão é preso por mais dois homens, parecendo estar estranhamente calmo. Uma das pessoas aproxima-se do grupo que está à sua volta.
- Correr atrás do chapéu, com ela, e quando o finalmente apanho, desequilibro-me e levo-a comigo. Caio na areia, com o seu olhar por cima do meu. Os seus braços ao lado da minha cabeça e os seus lábios descrevendo-me palavras impossíveis de pronunciar.
Uma das pessoas rasga uma camisola branca. Continua a chamar a pessoa que se aproxima. Ao longe, vemos as luzes das sirenes. “Vai correr tudo bem”, diz o homem enquanto prepara o bocado de camisa rasgada. O céu começa a ganhar tonalidades mais acastanhadas, a tarde aproxima-se.
- Lembro-me de percorrer a praia, quase de noite, de mãos dadas. Da forma como sorrias cada vez que tentava dizer qualquer coisa engraçada e de como eu adorava cada vez que dizias algo. Na viagem para casa, pousaste a tua cabeça no meu ombro e dormiste.
A ambulância entra na rua principal, o grupo à sua volta começa a dispersar, caminham na direcção dos enfermeiros. Do outro lado da rua, um carro da polícia pára perto do homem estendido no chão, levando-o preso. O resto dos polícias aproxima-se dele, um dos olhos já está fechado.
- Meu deus…isto foi há quanto tempo? Onde é que eu estive este tempo todo?
Os enfermeiros estão perto dele, pela primeira vez, desvia o olhar do céu avermelhado e olha para o seu lado. Um pouco mais à frente, uma jovem mulher está estendida no chão, o seu cabelo tapa-lhe a cara, está imóvel. Um grupo de enfermeiros tenta ajudá-la. Com uma das suas mãos, repara no sangue que lhe cobre toda a camisa. Os candeeiros da rua começam-se a acender e as luzes das sirenes começam a ficar mais presentes.
- Onde é tu estiveste este tempo todo? Onde é que nós deveríamos ter estado?
Olha novamente para o céu, para o último raio de luz no horizonte, para a última faixa antes da dança de sombras que cobrirá todos os prédios. Um final de tarde, um anoitecer. Na sua outra mão, um chapéu de senhora. Os enfermeiros tentam falar com ele, mas não os ouve. A jovem mulher é levada para a ambulância, ele fecha os olhos.
- Desculpa se o vento fez o teu chapéu cair, não te preocupes, eu apanhei-o. Ainda consigo ouvir as ondas e a concha que te dei naquele dia.
Os enfermeiros apressam-se para o ajudar. Já de olhos fechados, expressa um sorriso.
- Não te preocupes, o carro não está longe. Vamos caminhar mais um bocado, está bem?
As luzes percorrem a rua, o grupo de pessoas vai-se afastando ao sinal dos enfermeiros, que batem no peito dele. A ambulância com a jovem mulher já desapareceu e os carros da polícia fecham as entradas para a rua. Nas janelas, os habitantes observam o que se passa, comentando. A tarde já acabou.
Etiquetas: Experiencias
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